quarta-feira, 25 de março de 2009

[A Que É Melhor Do Que Eu]

No final do dia B. ainda estava à minha espera, apreensiva e, segundo ela, com algo muito sério para perguntar.

- [P], quanto a senhora ganha?
- Por que você quer saber isso?
- É que minha mãe quer trabalhar no seu lugar e eu gostaria de saber se a senhora ganha bem. Ela não vai usar as mesmas roupas que a senhora e nem vai chegar ouvindo música do jeito que a senhora faz e isso vai ser chato, então se não for para valer a pena eu vou dizer para ela que trabalha de graça.
- É quase isso, se formos pensar no quanto trabalho. Sua mãe fez faculdade?
- Não.
- Mas então?
- Não sei, mas ela quer trabalhar no seu lugar porque acha que é melhor do que a senhora.
- Que estranho... Ela te disse isso?
- Não, mas falou para o meu pai.
- Seu pai?
- É. Outro dia meu pai falou que a senhora é boa e minha mãe gritou com ele, dizendo que é muito melhor, com certeza.
- Ah...
- Acho que ela quer trabalhar no seu lugar, não é isso? Foi isso que eu entendi...

Voltei a acreditar na raça humana. De agora em diante deposito confiança na inocência dos inocentes. Creio também, doravante, na capacidade que um Pai-deles-que-está-na-Terra tem para levantar qualquer auto estima que esteja rastejando no fundo de um poço. Sou capaz de acreditar, inclusive, no lobo mau. O que quer comer a Chapeuzinho Vermelho, jogando-a na parede e chamando-a de lagartixa. Ah, não é assim? Enfim... ele quer comê-la, de qualquer forma.

[Porque no meu mundinho tem malícia e eu acharia tudo muito insosso sem um pouco de veneno]

quinta-feira, 19 de março de 2009

[Dos [P]oderes]

Em novembro do ano passado anunciei que ia deixar um dos meus 2645470912 empregos. Tão logo a notícia se espalhou virei refém de minhas próprias palavras e não podia dar um passo sem que visse manifestações de repúdio ao sistema opressor e à minha decisão que, de acordo com o discurso de todos, era tão somente a inviabilidade de continuar respirando e trabalhando em 2645470912 lugares. Elaboraram um manifesto, colheram assinaturas, citaram Marx, prepararam barricadas e sublevaram até mesmo as crianças de três, quatro, cinco anos a participarem de atos em favor da minha permanência, alegando que elas estariam fadadas a passar pelas suas vidas sem terem tido a chance de me ouvirem entre as quatro paredes do saber. A coisa foi tomando uma proporção tão grande que reuniões extraordinárias de pais, responsáveis, orientadoras, diretores, mães de santo, adivinhadores e amigas anônimas eram convocadas sem que eu tivesse tempo de pensar em não repetir as roupas e mal dando conta dos discursos elaborados nas vésperas das coletivas.

No final de dois meses propuseram que eu ficasse com a coordenação. C.o.o.r.d.e.n.a.ç.ã.o. Eu. A descompensada que arranca uma meia calça rasgada dentro de um carro num estacionamento supostamente vazio e só depois descobre que estava sendo observada. Eu. A mulher que corta o próprio cabelo, junta tudo numa sacola e joga no lixo do vizinho. Eu. A que sobe em mesas embrulhada numa toalha de banho e esquece que o compartilhamento de chaves existe e pode se fazer presente antes que a música termine. Eu. Aquela dos destemperos ululantes. C.o.o.r.d.e.n.a.n.d.o.

Argumentei que não sirvo para coordenar nem mesmo a direção das minhas lágrimas, nem o volume dos meus xingamentos, nem a quantidade de linhas dos textos que produzo e nem o rumo que minha imaginação consegue tomar à minha revelia. As pessoas daquele lugar fingiram-se de surdas, recusaram-se a abrir os portões e, para não ter que morar lá, recuei. Ninguém falou em diminuir meu tempo e aumentar meu salário, mas recuei do mesmo jeito. Não sabia bem o motivo, que só ficou mais claro de uns tempos para cá.

Nasci para coordenar. Também nasci para fazer o que faço e faço porque gosto, que fique claro. Mas descobri que coordenar é terapêutico. Não, eu não sou uma ditadora enrustida que se nega a ouvir críticas, elogios, firulas, problemas matrimoniais e horóscopo do dia. Ouço tudo, sou boa ouvinte, juro. Travamos altos debates e me recuso a sair das reuniões sem que as devidas decisões tenham sido tomadas, talvez devido ao trauma de toda uma vida como participante de reuniões que discutiam apenas o sexo dos anjos e acabavam em nada. Dou direito a réplicas, tréplicas e o que mais seja necessário. O problema é que Direção confia plenamente em mim [sim, na descompensada] e a palavra final é sempre a minha, entende? O perigo mora justamente aí: sentar na cabeceira daquela mesa imensa, ser o centro das atenções e dar o aval ou a recusa do que está por vir.

Já andei pensando, inclusive, numas botas com saltos estratégicos e um chicote, para pôr em prática minhas fantasias. Isto porque é só uma Coordenação. Ah, uma Direção nas minhas mãos...

[Sabe aquele ditado que diz que o Todo Poderoso não dá asas a cobras? Está explicado...]

terça-feira, 17 de março de 2009

[Prólogo]


A qualquer momento farei poesia entre minhas pernas e deixarei um rastro de palavras com gosto de gozo para que me encontres à sua espera, com os olhos fechados e o peito arfando como se não houvesse mais oxigênio amanhã. A qualquer instante envolverei seu corpo numa armadilha úmida e te manterei refém das minhas entranhas, até que passe esta tormenta de dizeres e angústia e permanências que se misturam com nossas roupas num emaranhado de botões difíceis de desabotoar, como se fossem parte da maquiagem da noite anterior que mantive até agora para esconder a boca suja de poeira e rimas imperfeitas. A qualquer segundo te farei renascer das profundezas do inferno que transformamos em lar doce lar, numa explosão de vida escancarada em forma de sussurros e arranhões e palavrões escorregando até meu umbigo. A qualquer minuto meus lábios vão tentar dizer o quanto. Mas ainda não. Dispenso a anestesia como a despudorada que abre mão da calcinha de renda e com o desdém de quem pisa em cacos de versos mal feitos para sentir, agora, somente as contrações do que está por vir. A qualquer momento.

terça-feira, 10 de março de 2009

[Das Constatações]

Acordei sobressaltada numa das recentes madrugadas da minha vida. Tudo porque tinha me dado conta de que o corte que eu tinha dado no meu próprio cabelo naquele dia estava totalmente assimétrico. Uma voz no meu subconsciente dizia para olhar direito, porque estava tudo torto e terminava com um "bem feito, isso é para você parar de pensar que se basta". Abri os olhos, olhei com atenção, estava estranho mesmo. Culpa da tesoura cega? Da minha instabilidade emocional? Das batidas do meu coração? Do espelho embaçado? Dos meus olhos de maresia, talvez. Havia cortado, recortado, repicado, arrumado o franjão dos meus sonhos, juntado tudo o que restara daquela coisa grande numa sacola e jogado no lixo.

[Devo esclarecer que joguei a sacola no lixo do vizinho? Fica a nota de esclarecimento]

Levantei da cama com aquele gosto de remorso na boca. Arrependimento total. Não tanto pela coisa surrealista que havia feito, mas por imaginar a minha sacola misturada a outras sacolas promíscuas no lixo do vizinho. E por que o lixo do vizinho, não é verdade? Porque se fosse o meu próprio lixo não seria eu, captou?

[Preciso esclarecer que me dirigi até o lixo do vizinho entoando um mantra para que a sacola ainda estivesse lá e que vê-la cabisbaixa e espremida num canto partiu meu coração? Creio que não seja necessário, não?]

A sensação que experimentei enquanto abria a sacola para me certificar de que meus fios ainda estavam lá foi algo indescritível. Quase um orgasmo. No caminho de volta para minha cama fui prometendo que daria um jeito de fazê-los voltar ao seu lugar de origem. Pediria para a santa criatura daquele salão colar, costurar, pregar, amarrar, mas daria um jeito.

[Devo ressaltar que levantei da cama após as duas horas da manhã e que me dirigi até o lixo do vizinho usando apenas o que estava usando para dormir, só para pegar a sacola com os meus pertences?]

A milagreira resolveu o problema, mas não sem antes perguntar quem tinha feito aquela porcaria no meu cabelo e terminar com um - veja só! - "bem feito", que era aquilo que dava arriscar com incompetentes. Eu chorava. Copiosamente. Olhava para aquele jogo de espelhos que não escondem sequer a minha alma e chorava. Pensavam que era por causa da desgraça consumada e se esforçavam para me mostrar que "estava ficando lindo, olha, ah, se o meu fosse assim, depois cresce tudo de novo", etc e tal. Mas eu chorava por causa da sacola abandonada no lixo do vizinho. Só isso. Culpa do vizinho, no fim das contas.

[Será que necessito frisar que fiquei mais pobre depois deste episódio e que mandei o vizinho você sabe muito bem para onde quando ele passou por mim e disse "uau, mudou o visual, ficou ótimo"?]

Fala a verdade, vai. Está começando a entender tudo, né? A insanidade que era uma suposição não te parece agora uma evidência?

quarta-feira, 4 de março de 2009

[XY]

Nos últimos dias tenho tentado, em vão, atinar com o raciocínio das moçoilas que dividem, subdividem, espalham e separam turmas para no final das contas me entregarem, de bandeja e sem a menor cerimônia, uma sala cujos ocupantes têm uma faixa etária que varia entre quinze e vinte e um anos e são, TODOS, do sexo masculino.

Como assim? - você me pergunta. E a tal da socialização? E aquela coisa chamada "entrosamento"? E o discurso contrário à separação dos sexos? E, em último caso, a perpetuação da espécie humana? Como fica? Não sei, não me deixam saber e devem ter raiva do fato de eu querer conhecer alguém que saiba.

Então chego perto da sala e não vejo uma representante feminina sequer. Resolvo procurar algum ser competente o suficiente para me dar a listagem dos meus pupilos dos últimos tempos [é, últimos tempos, ficamos juntos até altas horas, sabe?]. Com a listagem em mãos, pergunto o que significa aquilo e ninguém sabe me responder. No máximo, fico sabendo que vem mais gente por aí, mas não me permitem saber se é gente mulher ou mais gente homem. Altamente sigiloso este meu ofício, imagine só!

Volto para minha sala e Testosterona abre gentilmente a porta para que eu entre. Testosterona também carrega minhas coisas até a mesa e trava altos diálogos comigo, na primeira conversa informal que tenho com eles e da qual já tiro uma conclusão rápida, óbvia, gritante: isso vai ser difícil, penso secretamente. Testosterona reclama que já começo mandando todo mundo abrir caderno e escrever. Creio que Testosterona queria passar o tempo só na base da conversa. Testosterona reclama de quase tudo, olha para as paredes e demora para achar a caneta na mochila. Minha única alternativa é a de endurecer, sem perder a ternura, porém. Parece que funciona, porque Testosterona vai ficando mais maleável, vai perdendo o receio original e vai obedecendo - tanto que, no final da atividade que propus, todos estão rindo da originalidade do que eles próprios produziram e começam a dizer asneiras - perdoáveis porque interpretei como uma espécie de boas vindas àquele lugar de machos predominantes dominados por uma única fêmea.



- Eu pensei que não ia gostar da senhora. Mas eu gostei, sabia? Gostei mesmo - disse Testosterona.
- Azar o seu se não gostasse também.
- Aí, não pode fazer um elogio que já vem logo desse jeito, tá ligado?
- É, tô ligada. Ligadíssima.



- Isso daqui vale ponto? - quis saber Testosterona, revelando-se altamente mercenário.
- Tudo vale ponto para mim. Escreve seu nome com carinho e em português legível, vai que ele também vale ponto, não é?
- A senhora é bonita, me dá um ponto?
- Desse jeito dou até três!
- É?
- Sim, com três pontos costuro sua boca na próxima gracinha.



- Turma tranquila essa, né? - opina Testosterona.
- Espero que continue assim.
- Vai continuar - profetiza Testosterona.
- ...
- Não vai perguntar nada?
- Você pergunta, eu respondo, lembra?
- Se continuar assim, sem nenhuma mina querendo aparecer para competir com a senhora, vai continuar tranquilo.
- Morro de medo de minas. Piso nelas e elas podem explodir.
- Coitadas das minas! A senhora é divertida. Elas não sabem pensar tão rápido assim.
- Oh, deve ser por isso que estou aqui na frente. Não sei, será?




Preciso desviar de Testosterona, que está onipresente em qualquer canto daquela sala. Às vezes o ar torna-se pesado demais, de tanta Testosterona, e preciso beber água, contar até sete, chegar perto da porta - o que me dá a doce ilusão de que estou mais longe de Testosterona e mais próxima da rua. É necessário todo um preparo psicológico para poder lidar com uma situação assim sem surtar, de modo que não sei se sobrevivo lúcida até o fim do ano na sala da Testosterona...

segunda-feira, 2 de março de 2009

[Memória]

Mexendo em algumas gavetas da minha memória já tão abarrotada de lembranças que, juro, eu gostaria de esquecer, acabei encontrando isto:


Minha coleção de álbuns de figurinhas. Preciso dizer que só consegui me manter resistente durantes os primeiros minutos em que manuseava aquelas páginas amareladas de recordações. Depois disso, comecei a derreter e desandei a chorar.

Em minha defesa, posso alegar que sofro de TPM e, se choro quando ouço aquele apitar infame dos guardas de trânsito só porque o barulho estridente me lembra uma canção [olha a gravidade da minha situação!], imagine se eu não derramaria rios de lágrimas olhando para a minha infância ali, na minha frente!

Além disso, sinto o cheiro da saudade. Para cada saudade eu sinto um perfume diferente. E aquelas páginas enfeitadas de figurinhas fluorescentes têm cheiro de despreocupação, de homens fantasiados de príncipes encantados em seus cavalos brancos e de uma inocência que, olha, só sendo muito insensível para não me acabar em prantos, tá?

Por fim, se nada disso comover àqueles que já escolheram até mesmo um hospício para mim, posso adiantar que encontrei uma camisa de força l.i.n.d.a, super sexy, com um decote na frente e uns bordados nas mangas, numa destas liquidações da cidade. Comprei, claro.

É minha maneira de me preparar para quando criar coragem para reler as seis agendas e destrancar os três diários que encontrei na mesma gaveta e que agora me fazem companhia sobre a mesa, insinuando-se o tempo inteiro para mim...