Há dois dias eu bati com o carro e, como na minha vida as coisas possuem dimensões grandiosas, não foi uma batidinha qualquer, mas uma coisa cinematográfica. Coisa cinematográfica envolvendo a atriz principal, um carro, uma estrada vergonhosamente esburacada e mal sinalizada, um buraco do tamanho do vazio que existe no meu peito, aquele barulho medonho de carro perdendo o controle, um abismo e... três homens num caminhão grandioso. Conseguiu imaginar? Aposto que não. A produção caprichou e tudo foi muito, muito pior do que minhas palavras poderiam expressar.
O volante me desobedeceu, entrei na contramão, a porta e o banco do carona acabaram-se e me vi capotando num abismo depois de ser arrastada pelo caminhão grandioso, enquanto o vidro da janela se estilhaçava naqueles milhões de pedaços ínfimos, quase invisíveis, sobre mim. Coisa triste de se ver, imagino. Coisa mais triste ainda de se sentir, eu garanto. Não capotei porque, tenho certeza, naqueles segundos que me separavam de estar viva ou morta, alguém lá em cima que deve gostar muito de mim, percebeu a tempo que ainda devo ter muitas provas para corrigir, muitos textos para postar e muitos surtos para dar. Alguém foi lá e freou por mim porque, sabe, tudo se passou tão depressa que eu só queria parar o veículo, mas não conseguia encontrar o freio. Eu só conseguia dizer "não", tentando domar o volante e pensar "estou morrendo". Mas frearam bonito. E eu estou aqui, toda clichê, sem dormir há duas noites e com a sensação de que estou andando numa corda bamba desde então.
O resultado foram milhões de cacos de vidro misturados no meu cabelo e agarrados na minha saia de tal forma que eu não conseguia sentar sem sentir aquela sensação de estar sendo cortada. Ah, e um galo na minha cabeça, que só descobri no dia seguinte. E, sim! Um descontrole emocional tão grande após o acidente que, segundo os que me socorreram disseram depois, precisavam a toda hora me tirar do meio da estrada, porque eu me afastava do abismo e caminhava para o meio da pista. Mas eu só queria sair de lá, entende? Queria ir para longe. Não queria água, não queria sentar, eu só queria ter a certeza de que não estava sangrando, de que não ia desmaiar e de que a Polícia Rodoviária não ia prolongar demais aquilo tudo. E me afastava. Para o meio da estrada, bem lunática. Em transe. Fora de mim.
Os coadjuvantes eram quatro anjos dentro de um Fiat Uno que pararam com o único objetivo de não me deixarem entrar em desespero. Duas irmãs fervorosamente apegadas a Deus. Uma delas, a mais calada, não conversava comigo, mas cantava e, segundo ela, fazia aquilo, bem baixinho, pedindo para que eu me acalmasse. A filha dela, uma menina especial, me estendia a mão e falava docemente, dizendo que eu ia ficar bem. A outra irmã, uma senhora calma e de voz mansa, ficou o tempo todo do meu lado. O motorista era um conhecido da família, um caminhoneiro de jeans surrado e uma corrente dourada no pescoço. Eu queria dizer que não fazia idéia de que os anjos poderiam ser tão instigantes num jeans velho e com um cordão reluzente, mas só fui me dar conta disso quando nos despedimos e ele sorriu ao meu ouvir dizer que era para tomar cuidado nas estradas da vida porque, né?, vai que ele encontra uma louca como eu, ao que ele respondeu que estaria com a vida ganha, se isso acontecesse.
Posso garantir que morrer em sei lá quantos - e, serão muitos, estou pressentindo - reais não é nada, se comparado à sensação de se ver morrendo. As pessoas não acreditam que escapei sem um arranhão e, ao contrário do que esperei, disseram que é assim mesmo, que só acontece com quem dirige, ao invés de questionarem se fiz ou não o que era certo. Fiz o que achava que era o certo no momento, assim como a médica diz que não preciso de calmantes a princípio, pois tem certeza que vou conseguir retomar o controle. Ela acha que isto é o certo, mesmo que eu diga que fecho os olhos e escuto a janela se estilhaçando sobre mim, mas só no ouvido direito, sabe?
Queria ser mais clichê, mas o fato é que brincava quando dizia que queria morrer, agora eu sei. Não sei quando esta sensação ruim vai passar, mas se adianta dizer alguma coisa, já dirigi outra vez. Não temi ligar o motor, não temi os buracos, nem as curvas. Só não queria que a vida ficasse colocando tantas provas de resistência para mim, só isso. Era brincadeira. Eu quero viver. Com sede, com fúria, à exaustão.
[Mas a corrente dourada e o jeans surrado que os anjos usam... olha, é qualquer coisa de valham-me os céus...]