sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

[Derramado*]

O nome dele se espalha sobre mim. A cada página virada de um livro, está lá, nas entrelinhas. No lençol amarrotado de nós dois, ele se espalha. Nas esquinas que dobro enquanto tropeço nos paralelepípedos, sinto o nome dele se espalhando sobre mim. Mesmo quando os dias estão cinzas, ele se espalha sobre minha sombra escondida. Ele se espalha sobre as canções que ouço, de olhos fechados. Sobre as legendas das histórias que só fazem falar de nós dois. O nome dele se espalha enquanto uso o perfume que deixa marcas na sua pele. Ele se espalha na minha imagem refletida no espelho. Nos bolsos onde guardo minhas mãos que não querem outras mãos para se entrelaçarem, sinto que ele se espalha sobre mim.

O nome dele se espalha nas folhas dos meus cadernos, entre uma linha e todas as outras, porque é só o seu nome que escrevo, mesmo quando não escrevo nada. Ele, inteiro, se espalha, junto com seus dedos e suas digitais, sobre meu corpo nu. Ele se espalha entre os fios do meu cabelo desalinhado e se esconde nas minhas curvas, para depois aparecer espalhando sua língua pelo meu ventre, no meio das minhas pernas e por tudo o que fica de nós dois. O nome dele se espalha, leve como a brisa, pelo ar que eu respiro. Ele se espalha, doce como as coisas desejadas e inacabadas, derramando as frases que me fazem sorrir. Ele se espalha ao infinito. Até onde não posso enxergar, o nome dele se espalha, sobre mim.


[*sobre mim, e sobre os dias de 2012 que virão]

domingo, 25 de dezembro de 2011

[Escadas]

Noel, quero te contar sobre a minha escada.

Olho para o alto e vejo a minha escada. Cada um tem a sua própria escada, eis minha teoria. Devemos subir nossas escadas sem esbarrar na escada do colega ao lado, muito menos utilizar os degraus alheios para diminuir nossa subida. Eu tinha um casal de vizinhos.

[Eu sei, Noel. O que um casal de vizinhos tem a ver com minha teoria sobre escadas?]

Então. Um casal de vizinhos que se tornarm ex-vizinhos porque viraram ex um do outro. Murphy ali, coladinho comigo, deu aquela força na hora da partilha dos bens do ex-casal: ele, professor de Educação Física, ficou com o carro. Ela, também professora, com a casa, de modo que só tenho a agradecer a Murphy pelo seu empenho em manter próximo a mim uma pessoa que aboli do meu círculo de oi-bom-dia-tudo-bom-mas-que-calor há tempos, muito antes do fim do casamento, por motivos que não importam no momento. Valeu, Murphy.

*piscadinha irônica*

Quando ainda estavam juntos, eu via a minha escada e a dita esposa chegando da rua na companhia de um rapaz, aparentemente mais novo do que ela e o seu então marido. Achava um tanto quanto esquisito que ela necessitasse de companhia para um trajeto que conhecia muito bem mas, tendo ali na minha frente a minha própria escada para subir, me fazia de cega.

Juro que não fui eu, Noel. Juro mesmo. O casamento acabou com grande estardalhaço virtual da parte do ex-vizinho e até hoje não sei como ele ficou sabendo que sua amada curtia muito mais a companhia de um aluno - ah, essa coisa chamada fetiche, hein? - do que a dele. O tempo passou. Pouquíssimo tempo, diga-se de passagem. Aquela que nem considero mais vizinha assumiu, então, o namoro com o rapaz. Quando vi os dois passando juntos do outro lado da rua, me desequilibrei e quase caí da minha escada porque, imagine só, lá estava Murphy me mostrando o cidadão que lembra muito, do tipo lembra DEMAIS, meu ex. 

[Não sei qual é a de Murphy, Noel. Não sei o que ele ganha me fazendo passar por determinados constrangimentos. Alguém tem que ver isso aí]

Bom. Vida que se segue. Escada que se sobe, certo? Errado. Estacionei por uns dois dias e perdi alguns degraus que poderia ter subido elegantemente. Achei muito injusta esta minha vida de pessoa obrigada a lidar com um ex que me sacaneou, transfigurado em forma de namoradinho de uma vizinha que derrubou o próprio marido da escada. Ex sacana. Vizinha sacana. E um namorado de vizinha sacana de categoria igualmente duvidosa - afinal, que tipo de sujeito se prestaria a levantar suspeitas na porta da casa de uma pessoa casada, correndo o risco de levar, sei lá, um tiro? Uma grande sacanagem, no final das contas. Sacanagem, Murphy.

*apontando o dedo para Murphy*

"Você está é com inveja", cheguei a escutar. Sério, me disseram isso, Noel. Agora, olha para mim. Não, Noel. Olha direito, vai. Pareço alguém que sentiria inveja de uma mulher que ornamentou a cabeça do marido escolhendo, para tanto, um garoto inconsequente o bastante para não pensar nos riscos que ambos estariam correndo? E mais: um garoto parecido com um ex? "Inveja" não é a palavra que cabe aqui. De jeito nenhum. Porém, o fato de estacionar na minha própria escada, me perguntando por que, por que isso, Murphy? realmente estava me incomodando, não posso negar.

Muita terapia, um pouco de meditação, um empurrão nos meus neurônios estacionados e o tempo - ah, o tempo - me fizeram olhar para o alto e focar na minha escada. Pronto, só isso bastou. As coisas foram acontecendo naturalmente e os degraus tornaram-se menos cansativos. Ia subindo lépida e faceira, tomando conta da minha escada para que algumas criaturas indesejáveis não conseguissem atrapalhar a minha subida quando, um dia, entre um degrau e outro - igualmente com grande estardalhaço no mundo virtual -, fico sabendo que meu ex-vizinho está namorando.

Acho ótimo. Acho válido que toda fila ande e toda catraca, gire. A nova namorada do ex-vizinho, entretanto, é uma assassina. Mata, a cada oração que escreve, a Gramática. Para as mais sensíveis como eu, dói, dói muito ver tanto sangue derramado. Visualiza o sangue de um h no lugar errado, de um plural inexistente ou de um x usado como se não houvesse amanhã, Noel. Desnecessária, a atual namorada do ex-vizinho. Não sei se eu conseguiria transar com um assassino de tal naipe - ok, desci um degrau pela minha descompostura em insinuar que um PROFESSOR que foi casado com uma PROFESSORA só esteja com uma assassina da Gramática para, enfim, você sabe.

Não só me dei conta, toda tristinha, de que o ex-vizinho desceu um bocado de degraus como, para meu espanto, notei que sua ex-mulher também optou - esta sim, cheia de inveja - por descer, ao invés de subir. Seu atual namorado, cuja aparência só é do jeito que é para me lembrar que havia um tempo em que eu vivia um sentimento quase infantil eu poderia continuar derrapando na escada da minha vida, também demonstra ser uma espécie peculiar de homo sapiens sapiens. De cada dez palavras que o sujeito diz, onze são palavrões que não concordam entre si nem em gênero, número ou grau. Só posso concluir que ele guarda uma semelhança com o corpo físico do meu ex para me mostrar que... descer? Não, obrigada.

Olho para o alto e vejo a minha escada. Cada um tem a sua própria escada, eis minha teoria. Devemos subir nossas escadas sem esbarrar na escada do colega ao lado, muito menos utilizar os degraus alheios para diminuir nossa subida. Minha teoria também diz que não temos nada a ver com andamento das escadas dos vizinhos. A não ser que este andamento me atinja de alguma forma, o que tenho que fazer é olhar para cima. E subir. Eu me permito relaxar, me permito cansar. Eu me permito trocar as pernas e atrasar meus passos. Eu me permito bancar a espertinha, tentando subir dois degraus de uma vez - sou ansiosa, entende, Noel? Eu até me permito errar - se estou subindo de maneira equivocada, nada me impede de acertar no próximo movimento, não é?

Há apenas uma coisa que não me permito: descer. Desço quando isto me é imposto, quando não há outro jeito, quando preciso passar por algo que irá me ajudar mais lá em cima. Agora, descer por livre e espontânea escolha, não. Desculpa aí se sou exigente demais ou se só consigo estar com alguém que possa caminhar no mesmo compasso dos meus pés. Então, Noel, já que meu negócio é subir escada, eu só quero a minha enfeitada com coisas boas e bonitas que, eu sei, você tem de sobra guardada aí, dentro do seu saco. Eu só quero poder subir meus degraus enfeitados de coisas alegres em paz.

[Não estou pedindo muito, estou? Você tem que levar um papo com esse tal de Murphy, Noel. Sei lá, mostre a minha carta, explique que no fundo, b.e.m lá no fundo, sou uma boa moça ou ameace falar com seus superiores. É só uma escada, você consegue, Noel...]

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

[Amigo Oculto]

Tenho a ligeira impressão de que sou a dona do nome que todo mundo quer ler no papel que escolhe na hora do amigo oculto de final de ano, lá no trabalho. Acho que, automaticamente, quando a pessoa lê "[P]" no papel, toda a sua alma vibra porque, ora bolas, um "[P]" só pode significar uma coisa neste mundo: lingerie. Não causo transtornos. Não provoco grandes divagações. Não dou trabalho. Não sou difícil. Quem diz isso só pode ser alguém desequilibrado, portanto. 
 
Entretanto, sem querer ser estraga prazer, até porque, com tanta lingerie, o que mais posso proporcionar é prazer, gostaria de salientar que, além de aumentar minha coleção de peças íntimas, eu também usaria, feliz da vida: maquiagem, perfume, livro, anel de brilhante, bolsa, chocolate, algemas, passagem aérea, chantilly e, quem sabe, em último caso, lingerie - mas só em último caso, se é que me entendem...

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

[Raios]

Sonhei que fazia parte de um bando de seres que hipnotizavam pessoas através de raios fluorescentes - raios estes que, partindo de seus olhos, atingiam em cheio o alvo escolhido.

A cor do meu raio não me agradava. Era azul.

Exigi falar com meu superior. Argumentei que, além de ser uma cor que não me favorece, não fazia sentido meus olhos dispararem raios azuis quando utilizo muito mais a caneta vermelha do que qualquer outra cor na minha vida.

[Toda trabalhada na neurose de notas e médias, inclusive em sonhos]

Diante da negativa do chefe em mudar a cor do meu raio, ameacei iniciar uma greve pelo direito nato que todo ser humano - e não humano também, por que não? - tem de manifestar seu pensamento e sua discordância para com as cores dos seus raios, dos seus cabelos, das suas unhas, enfim.

Acho que eu era uma criatura com mega poder de aglomeração de funcionários descontentes, pois foi só ameaçar juntar a galera insatisfeita com seus raios fluorescentes que o chefe resolveu meu problema. Ganhei raios vermelhos.

De posse deles, comecei a me perguntar quem seria a primeira vítima que iria matar.

[Não expliquei que, uma vez hipnotizado, o ser atingido partia para um outro plano, né?]

Lembro que num espaço muito curto de tempo ia esbarrando em todas as pessoas que queria afastar da minha vida. Não precisaria de um raio, entende? Só sumir da minha frente e pronto. Então, todas iam passando por mim e eu não usava o raio com nenhuma delas.

De repente me vi sozinha, num campo lindo, cheio de flores azuis - ah, o azul! -, com meu vestido de camponesa esvoaçante e pés descalços. Quando olhei para meus pés, resolvi que ia lançar meu raio sobre eles.

Lancei.

Sim, hipnotizei a mim mesma.

O resto todo mundo já sabe.

Fim.

domingo, 11 de dezembro de 2011

[Fome]

de: Grâ 
para: "[P] G!"
data: 5 de dezembro de 2011 12:43
assunto: Fome

fome
[Do lat. fame.]
Substantivo feminino
1. Grande apetite; urgência de alimento.
2. Subalimentação (1).
3. Falta do necessário; penúria, miséria.
4. Situação de míngua ou escassez de víveres.

Não poderia dizer que tudo o que já perdi não me assombra, normalmente à noite, sempre no frio.
Não poderia não compartilhar de sua dor, já que ainda me ressinto de passos que se afastam, olhares que desviam, palavras que não voltam.
Não te deixaria sozinha, na vastidão do mundo das oportunidades derramadas. Mas sabe, algumas coisas inexistem na ausência de um outro, elas pré-requerem um cúmplice e somem na presença dos farsantes, não sendo nunca afetadas, nunca feridas - inocência, confiança, crença, esperança -, nunca são perdidas; o que se fere, afeta e se perde é a coragem.

Quanto à fome... tenho fome de tudo, a começar por "meninas-espirituosas".

[Dele]

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

["Você Tem Fome De Que?"]

Este post não é para contar como eu, funcionária pública do Governo do meu Estado que sou, fui obrigatoriamente convocada a mofar por d.u.a.s h.o.r.a.s esperando por um atendimento que, imagine só, nem havia solicitado. Este post não é para mencionar que foram d.u.a.s h.o.r.a.s regadas a picolés, bolinhos, água gelada, chás, café, brindes e a prova de que sim, deus existe. Também não é para explicar que deus se fez presente no instante em que, já possuída por uma força não muito sociável, pensei: deus, se você existe m.e.s.m.o, a hora é essa, hein? depois desse tempo todo esperando, olha lá quem irá me atender, tá?  e, abracadabra!, alguém foi enviado diretamente do Olimpo. Não quero contar, neste post, que o  enviado do Olimpo disse que o banco tinha uma quantia considerável à minha disposição e que fui abrindo minha bolsa e perguntando se ele ia pegar a grana e colocar lá dentro para mim. Veja bem, não quero dizer que - adivinha? - o moço me achou deveras espirituosa e, mesmo assim, tive que recusar a oferta, alegando que mereço mais, muito mais, poxa vida. Quero deixar claro que, embora pareça, não pretendo, de jeito nenhum, contar que já não tinha mais paciência para nada e não via a hora de sair daquele lugar.

Na verdade, este post é para contar que, depois de tudo isto, tive a fantástica ideia de entrar no Rei do Mate. Para que? Seria fome, mesmo depois de tantas guloseimas? Nunca saberemos. O fato é que entrei. Pedi um croissant de frango com requeijão. A moça disse que não tinha mais, que o último fora vendido para uma outra mulher e fez questão de me mostrar a outra mulher comendo o meu croissant. Levei alguns instantes para processar aquela cena e, em seguida, me ver chorando pelo croissant perdido. Pelo tempo perdido. Pelo cansaço. Pela inocência perdida. Pela confiança perdida. Pela capacidade de acreditar no outro, também perdida. Por tudo o que fui perdendo pelo caminho até aquele ponto da minha vida, no balcão do Rei do Mate, exausta, chorando por um croissant perdido. Este post é para contar como depositei toda uma carga emocional naquele croissant, como as pessoas acreditaram que era ele o grande motivo das minhas lágrimas e como se compadeceram da pobre menina faminta - oferecendo outros salgados, inclusive. Só que, você sabe, não dava para substituir o meu croissant por um outro salgado qualquer. Minha fome era de tudo o que havia perdido e, naquele momento, o tudo estava no croissant que se desmanchava na boca de outra pessoa. Outra pessoa, que ironia. Fico me perguntando quantos croissant de frango com requeijão vou ter que perder até compreender qual é o propósito a que estou sendo submetida. Deve haver um propósito. Sim, deve.