terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

[Dos Deslizes Teus]

Desliza as mãos pelo teclado como se elas estivessem vagando por entre minhas pernas. Encosta a cabeça na maciez do meu texto enquanto enfia os olhos na minha alma. Desdenha todas as minhas frases mal feitas, mas precisa lavar o rosto porque embaço a visão desacostumada aos meus delírios febris. Agarra minha cintura disfarçada de cadeira na esperança vã de que eu me encaixe no lugar de dores passadas. Disfarça um meio sorriso porque não pode demonstrar reações passionais para uma máquina. Lê minhas linhas outra vez e mais outra e cada vez mais devagar, fingindo que me arrasta pelos cabelos do mesmo jeito que arrasta a voz em súplicas roucas que não ouço do lado de cá.

Depois me vira as costas, se afasta e finge me esquecer, para voltar no dia seguinte, com o peito arfando, à procura do que ficou.

Para salivar entre meus parágrafos como se cada um deles fosse um trecho das minhas curvas. Como se eu fosse um texto fácil de ser decifrado. Como se eu pudesse me contentar apenas com salivas...

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

[Olhos De Maresia]


Eu vou me jogar da porra daquela Ponte.

Antes, vou encher o carro com todas as recordações inúteis que couberem dentro do porta-malas, do porta-luvas, entre os bancos e sobre os tapetes sujos da lama da noite anterior. Farei questão de pendurar os discursos no espelho retrovisor para que fiquem dançando a música muda que cantarei com meus lábios em chamas pela proximidade dos instantes finais. E não pense que vou ser tão clichê a ponto de me jogar daquele vão que é o mais distante da água e o mais próximo dos anjos. Não! Lembra como eu sempre fui clichê? Como uma virgenzinha de novela das seis? Lembra também do instante em que me transformei numa puta apaixonada pelo mocinho tímido e sem jeito, de mãos nos bolsos e palavras desconcertantes? Fui do céu ao inferno e você nem notou! Mas agora dei um jeito de fugir dos clichês. Ninguém sabe, mas calculei sorrateiramente a distância no dia daquele engarrafamento dos infernos e amarrei um fio do meu cabelo com uma fita vermelha no meio exato, do tamanho do vão que há entre mim e você, de modo que vou me jogar numa baía com suas águas escuras divididas pela metade. Se tudo correr como planejo, iremos de encontro a uma pilastra: eu, você em mim, elas em você, meus sonhos, meus medos e todas as cartas de amor que nos escrevemos e que já estão devidamente destroçadas em vários pedacinhos, pedacinhos estes que vou prender no decote do meu vestido e espalhar pelo ar do mesmo jeito que me espalhei em você desde que nos conhecemos. Vou manchar o concreto frio com as iniciais dos seus nomes banhadas em meu sangue. Vou fazer o mar pegar fogo quando meu corpo tomar conta das ondas e transformá-las nas rédeas da minha vida que se vai pelo oceano. Vou te ligar a tempo para que me assistas em câmera lenta. Vai dar tempo, não enche minha paciência, merda! Sei que vai. Dará tempo de acender um cigarro. Sobrará tempo para um vento no rosto ao som da sua banda preferida. Sei que vou me arrepender das mordidas que não dei em minha própria carne e que acabei guardando entre meus dentes. Pensava que com algumas mordidas talvez eu conseguisse te tirar de mim, que tola! Tenho hematomas na alma por culpa delas. E vou me arrepender também de não ter vomitado todos os meus versos pelo céu da minha boca. Eu me engasgei tantas vezes com declarações rebuscadas, tantas, tantas, enquanto você pensava que era álcool barato. Vou carregar o peso de quem transbordou pelo umbigo toda uma hemorragia de sentimentos pisoteados. Está tudo aqui, escapulindo pelos meus olhos de maresia. E vai tudo comigo. Tudo, entendeu?

Quando me jogar da porra daquela Ponte.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

["Do Meu Português Ruim"]

Descobri algo inusitado sobre minha própria pessoa nos últimos dias. É o seguinte: utilizo um dialeto aborígene que, provavelmente, é uma mistura surreal de cada língua falada pelas minhas gerações antepassadas, para me comunicar com as pessoas com as quais sou obrigada a trabalhar. Por conseguinte, sou uma mulher absurdamente incompreendida no meio do qual tiro meu sustento. A conclusão óbvia a qual chego depois disto tudo é a de que só me resta utilizar uma linguagem alternativa para ser compreendida nas horas em que mais preciso.

O engraçado é que descobri tudo por acaso, sabe? Pediram a minha disponibilidade, como fazem todos os anos, e eu estipulei os dias em que poderia estar trabalhando ali e acolá. Expliquei que estaria disponível para uma conversa sobre alternativas àquelas que eu havia sugerido, desde que a conversa não precisasse envolver arranhões, hematomas e cabelos embaraçados. Como você pode ver, sou uma pessoa altamente sociável e consciente dos meus destemperos. Jurava que tinha explicado tudo em português inteligível e que meus desenhos tinham sido claros o suficiente para que não me importunassem durante as férias. E ninguém me importunou.

Então, eis que voltei ao trabalho, recebi um documento com meus horários e, depois de conferir meu nome, meu cargo, meu horóscopo do dia e afins, fui perguntar por que é que tinham me colocado no dia tal se o dia tal era um dos que eu havia assinalado como "este daqui não pode, nunca, jamais, de forma nenhuma, já que estou em outro lugar e não posso estar lá e cá ao mesmo tempo". Questionei se tinham lido direito as minhas observações e se conheciam aquela lei da Física que diz que uma [P] não pode estar em dois lugares [muito, muito distantes um do outro] ao mesmo tempo. Ah, não existe esta lei? Acabei de criar, pronto. Ainda ponderei calmamente que havia me colocado à disposição para que me procurassem durante as férias caso precisassem mudar alguma coisa, porque haveria tempo para isto, se estavam lembrados das minhas palavras e tal. Após receber "sim", "sim, [P], eu lembrei disso, sim", "claro, [P], eu me lembro do que você disse" e respostas similares, já com o sangue borbulhando em minhas veias, indaguei por que então tinham feito aquilo comigo, sem que tivesse sido consultada.

Juro que pensei nas respostas que eu perdoaria, naquele lapso de tempo em que todos me olhavam à espera de um rompante. Perdoaria se me dissessem que, como sou a mais sublime das pessoas que trabalham lá, eu teria a superioridade de me adequar seja lá de que maneira fosse aos novos dias e horários. Também perdoaria se respondessem que, oh, como sou a mais bela das mulheres naquele meio de mal comidas, talvez eu conseguisse dar um jeito de modificar t.o.d.a a minha vida já mais ou menos organizada em termos de trabalho somente para continuar levitando faceiramente e me destacando do bando de mal comidas. Aceitaria até se me convencessem de que acham, do fundo daqueles corações vazios, que tenho, sim, meus poderes sobrenaturais, de modo que tinham certeza que eu conseguiria burlar minha recém criada lei da Física e estar lá e cá, aqui, acolá e em todas as partes, ao mesmo tempo.

- Não estou entendendo, [P]. Não te consultamos, quando você tinha pedido que fizéssemos isto e tendo se colocado à nossa disposição. Erramos nisso, sim. Mas também você faz uma tempestade, não acha? Você sabe como é isto de montar os horários, nunca conseguimos agradar a todos e blábláblá. Além do mais, o que é que você tem para fazer de tão importante em outro lugar que não pode dar um jeito de resolver tudo em paz?

Foi o que me responderam. Aí não, né? Foi quando descobri que vinha falando no tal dialeto aborígene e percebi que só seria entendida quando soletrasse na língua daquelas pessoas.

- Sabe o que é? Lá no outro lugar, como o público é maior, preciso me desdobrar para dar conta de todos. Posso até fazer as contas para dar a dimensão exata do quanto sou essencial por lá. É muita felação por dia, tudo cronometrado em suas devidas horas. Fico cansada. E vocês hão de concordar comigo que chegar aqui com minha língua danificada atrapalharia demais o meu desempenho enquanto profissional. Assim sendo, como não estou pedindo para trabalhar menos do que ninguém, mas somente para trabalhar nos dias que eu havia cedido EM DEZEMBRO do ano passado e dos quais NINGUÉM reclamou antes, TENHO CERTEZA que todas vocês, mulheres super bem resolvidas e nem um pouco invejosas, farão de tudo, modificarão os horários de quem for preciso, para que possam me atender, sem que tenhamos que levar isto a alguma INSTÂNCIA SUPERIOR, certo?

Precisava ver o bando de mal comidas e seus olhinhos brilhando diante da simples menção de uma felação! Sim, porque de nada adiantaria tentar explicar que lá no outro lugar exerço a mesma função, porém, trabalho em dobro e com pessoas muito mais acessíveis do que aquelas que estavam embasbacadas na minha frente.

Agora, o mais importante: o negócio é dizer tudo, contar até dez mentalmente, só para me certificar de que fui BEM compreendida, dar as costas e bater a porta, se possível sem arrancar a maçaneta. Não dou dois dias para que tudo esteja resolvido. Aposto que agora me entenderam...

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

[Opinião]

Percebo que preciso tomar cuidado com minhas frases avulsas quando, no meio de uma conversa entre amigas num lugar público, depois de um encontro inusitado entre uma delas e a atual namorada do seu ex, quando perguntada sobre o que eu achava da moça, se lembrava dela, era aquela daquela loja, etc e tal, sintetizo tudo em poucas palavras e digo, naturalmente, ...

- Ah, sim, claro! Lembrei, sim! Eu sabia que o cacarejar dela não me era estranho!

... e uma das amigas pega imediatamente um caderninho na bolsa, anota minha frase com aspas e tudo enquanto berra "eu sou sua fã!!!"

[Posso ser totalmente descompensada. Mas se há algo que me conforta é ver que existe sempre alguém mais louca do que eu, sabe?]

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

[Estréia]

Se tivesse que estar fazendo alguma coisa agora, neste momento, eu estaria tendo um ataque de nervos. Então, como sou uma pessoa que não tem q.u.a.s.e n.a.d.a para fazer nesta vida além de surtar lindamente por conta de umas coisas aí que eu j.u.r.a.v.a que não aconteciam mais, só me resta entrar aqui e avisar que doravante, em todas as sextas-feiras, vou estar no Banheiro. Sim, eu podia estar na sala, na cozinha, no elevador, na cobertura ou no estacionamento. Mas estou no Banheiro mesmo.

O caminho que meus pés percorrem agora também leva-nos até lá:

Sabe o que isto significa? Mais um lugar onde vou poder surtar l.i.n.d.a.m.e.n.t.e! Olha que coisa mágica deve ser este Banheiro!

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

[Impressão - III]

- Ontem mesmo, ontem mesmo eu conheci uma menina assim, da sua idade mais ou menos, sabe com quantos filhos?
- Da minha idade? Que interessante esta comparação... Quantos filhos?
- Sete. SETE! E mais um na barriga!
- Oh.
- Como pode, não?
- É. Como? Quantos anos ela tem?
- 23.
- Há!
- O que foi?
- Quantos anos o senhor acha que eu tenho, só por curiosidade?
- Uns 23, 24, 25 no máximo.
- [Dá o sorrisinho discreto de satisfação]
- Espera. Quantos anos você tem?
- [Fala a idade bem pausadamente, para não haver equívocos]
- Parabéns, minha filha. Genética muito generosa, a sua. Nunca lhe daria mais de 25.

Digam "olá" para o Senhor F., um profissional exemplar, dono de sessenta e sete anos bem vividos, embora aparentemente sejam uns oitenta [culpa da genética dele, eu não tenho nada a ver com isto], contador de histórias nas horas vagas e, acima de tudo, um homem sábio, do tipo que sabe levantar a auto-estima de qualquer mulher sem nem sequer ter notado que a mulher em questão está fora de órbita - mas a culpa não é dele, a mulher é quem sabe disfarçar. Toda mulher devia conhecer alguém como o Senhor F., principalmente naqueles dias em que quebrar os espelhos parece ser uma necessidade vital, tal qual beber água...

domingo, 1 de fevereiro de 2009

[Complô]

[Na sala de tortura]

- Olha, a senhora precisa me explicar o que é isto aqui que eu li e...
- O que? Achei ter ouvido você dizer que não ia abrir. Abriu? Não suportou a curiosidade?
- É, mas só abri agora, nos quarenta e cinco do segundo tempo. Quem sabe da próxima vez eu consiga chegar até aqui com os envelopes fechados, não é?
- E o que te fez abrir, estando tão perto de me mostrar?
- Olha, Doutora, a senhora não é minha terapeuta, não me dê a chance de alugar seu tempo sem necessidade, tá?
- O que aconteceu?
- Um telefonema aí...
- Quer falar sobre?
- A senhora está me enrolando enquanto olha estes papéis, não é? Pode falar, estou pronta, vai.
- Primeiro o telefonema, [P]!

[Minutos antes, o telefonema]

- [Tentando dizer coisas com sentido, mas as palavras não saem conforme o esperado. Deve ser o barulho da chuva. É tanta água atrapalhando o raciocínio que pode ver as frases escorrendo pelo seu cabelo junto com os pingos grossos da chuva]
- [...]
- [Pronto, agora desanda a chorar. Entre os soluços, uns apelos, um pedido, alguns medos e um beijo]
- [...]

Desliga. Espera cinco minutos até que o vermelho abandone seu rosto e só então segue rumo ao seu destino. Vai encher as ruas de poças de lágrimas, vai andar a esmo por entre os carros, vai esbarrar naquele guarda-chuva distraído e vai pegar um resfriado. Andava esquecida, ultimamente. Esquecera o seu guarda-chuva. Assim como esquecera de almoçar. E só lembrava que tinha que dormir quando o cansaço a vencia. Vai longe, desse jeito.

[De volta à sala de tortura]

- Basicamente, foi isso.
- Você fez o que eu mandei, [P]?
- Bem... então... assim... eu tinha muita coisa para resolver. Não podia encarnar a Bela Adormecida por tanto tempo e repousar solenemente.
- Quando é que vai parar de funcionar em 220?
- Ai! Vou morrer, é isso?
- Todos nós, um dia, [P]...
- Não me enrola, a senhora quer me ver surtar aqui?
- Relaxa, você vai tomar isto aqui. Vamos ver se desta vez resolve colaborar, não é mesmo?
- Digamos que eu não seja uma pessoa obediente.
- Sabe, [P], às vezes não é questão de desobedecer a alguém, mas sim de obedecer ao que se sente. E tem mais...
- Pisa, vai.
- O que você bebe para relaxar?
- Hã?
- Vá beber um conhaque para relaxar, menina. Você está muito tensa, não faça isso consigo. Vá. Um conhaque, tá?

[Na rua]

- Genitor, não precisa me levar. Vou de ônibus. Preciso pensar.
- Deixe para pensar quando chegar na terapia, não?
- Preciso pensar AGORA, Genitor. Senão perco o momento, entende?
- Você é quem sabe. Onde está o guarda-chuva? Está toda molhada.
- Esqueci na outra bolsa.
- Isso é que dar ter mil bolsas.
- Genitor, não tenho mil bolsas, embora a idéia muito me agrade.
- [P]?
- Vou me atrasar. O que é?
- Andou bebendo hoje?
- Não. Mais um dia.
- Engraçadinha. Deve estar precisando. Você parece tensa, precisa relaxar...

[No ônibus]

- Senhor, eu não costumo fazer isso, mas será que o senhor poderia trocar de lugar comigo? Sabe o que é? Este ônibus lotado, estas janelas fechadas, este pervertido roçando seu membro no meu ombro o tempo inteiro, todo esse ar pra respirar, não estou me sentindo bem...
- Claro, minha filha, claro.
- Obrigada.
- [...]
- [...]
- E então, está melhor, filha?
- Sim, estou.
- Mas, mas... você está chorando?
- Não, só estou pensando...
- Você pensa molhado...
- O senhor é gentil.
- Filha, não sei o que se passa. Mas quando eu tinha a sua idade, e lá se vão tantos anos, eu costumava beber qualquer coisa para relaxar.
- Jura?
- É sim.
- Tenho que ir. Desço no próximo ponto. Foi um prazer. E obrigada, mais uma vez.
- Só mais uma coisa, minha filha. Eu não ia permitir que você ficasse do lado desse depravado aqui. Não mesmo...

[Na sala do descarrego]

- Então, o que me diz? Está pronta?
- Para?
- Sair daqui e tomar um porre. Sim, porque depois de tudo o que me falou, [P], seria o cúmulo eu perguntar se está pronta para fazer o que precisa ser feito, não acha?
- Ironia...
- Só uso com quem pode entendê-la. Reflita bastante. Se preferir refletir com um copo de bebida na mão, vá em frente...

[Eu sei o que é isto, tá? Todos estão tramando algo diabólico contra mim. Querem me rotular de alcoólatra só para terem o gostinho de me ver entrando, acompanhada de minhas bolsas e meus sapatos, num A.A da vida. Onde já se viu? Ninguém me respeita mais. Nem as médicas, nem Genitor e nem os estranhos. Mas eu sou mais esperta, lógico. Comi um pote praticamente cheio de sorvete de morango sozinha, quando cheguei em casa. Que se danem as calorias. Ou... outra hora penso nas calorias. Porque no momento estou ocupada demais tentando entender gente...]