sexta-feira, 1 de outubro de 2010

["O Que Você Vai Ser Quando Você Crescer"]

Eu sempre soube o que queria ser quando crescesse. Comecei minha vida profissional ainda na faculdade, trabalhando de graça num lugar comunitário. Genitor reclamava do fato de eu acordar cedo aos sábados e pagar para ir trabalhar. Meu lado Madre Teresa, porém, não se deixou abater com discursos pequeno burgueses. Tempos depois me inscrevi num concurso e ganhei uma bolsa até o final da faculdade, que pagava um salário para eu exercitar aquilo que sempre soube que seria quando crescesse e fazia Genitor reclamar [compartilhamos essa coisa de reclamar e reclamar e reclamar, afinal, a genética existe para isso, correto?] que era uma miséria, muito pouco, nem valia a pena e afins.

Assim que me formei, fui trabalhar no subúrbio. Não era um subúrbio qualquer, colega. Era um subúrbio que me fazia acordar às cinco da manhã, de segunda a quinta, para estar no trabalho pontualmente às sete e quinze, presta atenção. Um subúrbio que me gerou traumas para toda uma vida, incluindo:

a) falsas tentativas de assalto: já contei que uma vez deixei o ladrão tão compadecido que ele quase chorou comigo, arma na mão e tudo, uma beleza? não? mas isso é outro assunto;

b) um pé engessado: que eu ganhei adivinha como? esqueci o último degrau do ônibus e me espatifei no asfalto em frente a um terminal lotado de estivadores que, enternecidos com os palavrões que saltavam da minha boca e escorriam àquela hora da manhã pela rua atrapalhando o trânsito, me apoiaram, me deram colo e me ensinaram boas maneiras;

e c) o receio constante de ser atingida por uma bala perdida numa via expressa: carrego isso comigo nas minhas entranhas até hoje de modo que, se eu tiver que andar por uma daquelas linhas coloridas, por exemplo, vou escolher dar a volta, perder mais tempo ou acordar muito mais cedo, só para evitar aquele caminho. A não ser que seja minha única opção, claro. E a não ser que uma bala perdida não doa. Dói? Não sei. Sei de muita coisa que causa dor e, numa boa, já é o bastante. Enfim, estou me perdendo, droga!

Ah, sim! Foi no subúrbio que ouvi da então diretora que, se me lembrasse dos nomes e fisionomias daqueles meninos dali a alguns anos, eu veria para que eles serviram. Toda uma vibe "você está NO LUGAR, garota, se liga!"

Foi no subúrbio que conheci L. Não só L., claro. Minha memória generosa me permitiria lembrar, também, de J. [uma menina que, mesmo sabendo da distância geográfica que nos separava, insistia para que eu a levasse embora comigo, todas as terças e quintas, quando nos víamos]. Mas L., né? L. era um adolescente que se destacava dos demais. Absurdamente inteligente, dono de um discurso eloquente e notas altas. L. tinha um irmão gêmeo, o outro L. E como eu sabia quem era quem, se eles sentavam um na frente do outro? Eu sempre soube o que seria quando crescesse, simples. Instinto. Certeza de que, se a diretora tivesse mesmo razão, L. não estaria entre os outros meninos.

Então outro dia L. me procurou. Como? Não sei, talvez ele também sempre soubesse que me encontraria quando crescesse. Parece que não foi uma tarefa fácil, porque há anos abandonei o subúrbio, a diretora não era mais a mesma, a maré não estava favorável, assim como meu trânsito astrológico e, sendo assim, percorreu uma via-crucis até chegar a algum tipo de contato meu. L. agora é um homem de vinte e dois anos que já começou uma pós-graduação na mesma universidade em que fiz a minha e que acabou de ser chamado para um concurso que fizera tempos atrás. Somos colegas de profissão, veja só! Não reconheceria L., se o visse passar por mim na rua.

Eu sempre soube o que queria ser quando crescesse, talvez porque já sonhasse em receber um e-mail de alguém que passou pelas minhas mãos anos atrás e fez questão de me mostrar que estava mesmo certa quando escolhera o que queria ser. L. me mandou um vídeo com o trecho da sua formatura, quando citou a pessoa que o inspirou a escolher aquele curso, quando disse em público que espera ser como a tal pessoa era para ele e quando escolheu, como sua música, uma que esta mesma pessoa lhe apresentou, tempos atrás, ao levar um cd e a letra, ensinando todos a cantarem que quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

L. me disse que continuo com a mesma fisionomia de tempos atrás e que, se antes não podia dizer por causa daquela coisa de hierarquia, agora ele não precisa me obedecer e pode dizer o que pensa. Não sei lidar com elogios, ainda que só esteja vendo a pessoa através de um computador. Não sei como reagir e fico pensando falo que ele está irreconhecível, está grandão e graças a Deus por isso? Não sei como proceder, não sei.

Agora L. quer me encontrar. Acha justo que eu receba não sei bem o que, talvez o seu projeto de pesquisa para dar uma olhada, assim como quem não quer nada. Eu sempre soube o que queria ser quando crescesse. Conhecer um monte de L. e, de alguma forma, deixar minha marca, não passar em branco e não fazer uma viagem perdida em vida. É, mas isso implica em ser reconhecida pelo meu trabalho e, evidentemente, receber elogios. A contradição é tudo na vida da pessoa, não? Enfim...

[Só não sei o que fazer ou onde enfiar meu rímel quando surge um L. que faz com que me dê conta que, realmente, se eu quero, consigo]

8 comentários:

  1. adorei esse post, serio.
    Pra mim, foi um dos que eu mais gostei.
    E se L. visse tbm ia gostar, mas talvez isso não seja uma boa idéia. Afinal Rimeis são ambíguos.

    beijos, querida.

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  2. Eu fico sem saber o que dizer aqui. E a culpa é sua, viu?! Meus olhos marejaram, meu coração apertou um pouco aqui e não é tristeza, é um sentimento bom por saber que ainda há profissionais da educação de verdade.
    Obrigada por mostrar que nem tudo esta perdido.

    Qto ao rímel, compre um à prova d'água, viu? ;D

    bjs

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  3. Fazia tempo que eu não te lia, doida.. perdi meu tempo.

    Beijinhos.

    Ivan.

    Tipo assim, perdi o tempo por não ter lido, sacou? É foi isso que eu quis dizer.

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  4. fessora, a senhora também me inspirou. posso te encontrar agora?

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  5. Duanny, tem razão: rímeis são ambíguos. É por isso que muita gente que convive comigo nem imagina que possuo um blog inocente como este!

    =****

    *enxuga lagriminha por ter lido "foi um dos que eu mais gostei"*

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  6. Pri, eu me esforço, eu juro que me esforço... você percebe, mas há criaturas que não, sabe? É este tipo de gente que me faz pensar que [quase] tudo está perdido sim mas, mesmo assim, vamos em frente, né?

    Beijo!

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  7. Marco, pode, né? Eu já disse que pode. O problema é conseguirmos uma combinação favorável de fase da lua/horóscopo do dia/tempo disponível.

    Aquela sua ideia original, de uma galera ao redor para o caso de eu ser uma chata, lembra? A que eu sempre recusei porque É ÓBVIO que o chato aqui é você, sabe? Então, ela agora nem me parece tão inconveniente, porque acho que é o jeito...

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