terça-feira, 23 de junho de 2009

[Piedade]

Então fui na festa de um aninho da filha de Afilhado. Coisa mais linda. O Afilhado. E a filha também, lógico. Estou numa fase da vida em que tudo parece ter prazo de validade. Com as festas infantis não é diferente, o que significa que depois de uma hora de músicas e guloseimas todo o meu ser implora por algo mais adulto no ambiente, ou então para que eu tome o rumo de casa. Mas era a filha de Afilhado e me senti obrigada a ir. Uma obrigação minha comigo mesma; afinal, fui a pessoa que preparou a primeira mamadeira que ele tomou na vida, foi das minhas mãos que ele ganhou a primeira chupeta e fui a primeira a pegá-lo no colo quando chorava, tirando-o do berço pouco depois de ter chegado da maternidade. Afilhado foi o boneco vivo das minhas brincadeiras de casinha quando eu tinha oito anos de idade durante um mês, período em que ficou afastado da minha tia por motivos de força maior. Lembro como se fosse hoje daquela trouxinha minúscula sendo carregada pela mãe e, pouco depois, uma correria sem fim porque alguma coisa estava errada com ela. Foi assim que pararam um carro no meio da rua, entramos apressadamente e, embora eu não entendesse muito bem o que estava acontecendo, sabia que tinha que segurar Afilhado bem firme. Segura ele direito, não afasta seu corpo do dele, alguém disse. Eu segurava Afilhado enquanto seguravam minha tia que, por sua vez, segurava sua barriga com uma operação se abrindo. Altas emoções para os meus oito anos de idade.

Quando tudo se acalmou e minha tia voltou para casa, confessei que, ao mesmo tempo em que preparava as mamadeiras, colocava na mão uma colher razoavelmente cheia de leite em pó e comia extasiada o alimento de alguma solitária que talvez fizesse moradia dentro de mim. Também confessei que dava banho nele escondido, já que não confiavam na minha capacidade de logística para segurar um recém-nascido num braço só enquanto ensaboava todas as suas dobrinhas. Mesmo assim, acharam que eu merecia alguma coisa, de modo que não batizei, mas consagrei meu boneco vivo e ensinei-o a me chamar de dinda, não imaginando que quando alcançasse um metro e oitenta e cinco de altura ele continuaria a fazer isso comigo, claro.

Na noite da festa da filha de Afilhado fazia frio. No planeta onde vivo, quando está frio, é comum as pessoas de bom senso utilizarem qualquer tipo de agasalho, mas o mesmo não deve acontecer na galáxia onde vivem os familiares da esposa de Afilhado. Aliás, ela é um caso à parte: muito parecida comigo no quesito não estou nem aí para o que pensem sobre meu jeito, minhas atitudes, o que falo, o que penso, a cor do meu esmalte ou minhas posições sexuais preferidas. Tão parecida que percebi logo que não poderíamos ser amigas, como sou da esposa de Primo Pastor. Não podemos ocupar o mesmo espaço. Não dá, é inviável, e isto ficou claro quando ela me viu copiando um trecho de um livro que tinha acabado de ler e me direcionou um certo ar esnobe depois de perguntar de quem eram as palavras e eu ter respondido que eram do Caio. Se eu falo Caio, suponho que você saiba a qual Caio estou me referindo. Esposa de Afilhado riu, perguntou em que mundo eu vivia por estar lendo um desconhecido ao invés de ouvir Mc Sapão. Onde Afilhado encontrou esta sua esposa é um dos mistérios da humanidade, na minha humilde opinião.

Enquanto eu me encolhia cada vez mais no meu mundo paralelo, ela e suas amigas, primas, irmãs, tias, sobrinhas e agregadas desfilavam pelo salão exibindo seus corpos em pedaços de pano de um palmo que fingiam ser saias. Carnes expostas, sabe? Quando começaram a servir coisas alcoólicas eu pensei comigo mesma que só faltava um funk para a desgraça ser completa. Quem mandou pensar, não é verdade? Tinha esquecido da força do meu pensamento. Já sabe, se quiser que eu mentalize o homem dos seus sonhos ou o emprego da sua vida é só dizer, ok? Comentei que se colocassem a aniversariante para dançar eu ia juntar minhas jujubas, meus brigadeiros, levantar e ir embora. Colocaram a menina para dançar no meio do povo. Juntei meus doces, levantei e Afilhado lembrou que, ora, eu ainda não tinha sido filmada junto deles e nem posado para fotos. Eu sei, não precisava ir. Podia alegar dor de cabeça ou maquiagem borrada mas, puxa, era Afilhado, o das mamadeiras, dos choros, da chupeta, dos sorrisos, do par de olhos azuizinhos me olhando enquanto eu cantava cantigas de ninar. Todo um apelo sentimental estampado naquele sujeito segurando a menina pela mão.

Quando a sessão de caras e bocas terminou e eu voltava para o meu mundo, uma delas veio em minha direção e falou um monte de coisas bonitas, em nome de todas elas, assim disse. Perguntou quem eu achava que era para levantar do meu canto e ir aparecendo mais do que todas, e que se fosse por causa do meu figurino, era para eu ficar sabendo que vestido, meia-calça e botas é coisa de mulher antipática que gosta de aparecer. Acrescentou que elas poderiam ter quem quisessem e que duvidavam que eu soubesse dançar como elas. Concluiu dizendo que devo ser mais insuportável ainda porque meu cabelo é bom. Estava vendo a hora de ser desafiada a dançar na frente de todo mundo e entrar em desespero porque provavelmente não iam arrumar mesa apropriada e nem minha trilha sonora preferida, quando Afilhado se aproximou e perguntou o que estava acontecendo. Respondi que não era nada, que aquela mocinha queria ouvir de mim algumas palavras e que eu tinha pensado nas seguintes:

"Então sonhou que deslizava suavemente, como se usasse patins, sobre uma superfície dourada e luminosa. Não sabia ao certo se um dos anéis de Saturno ou uma das luas de Júpiter. Talvez Titã."

Falei cada palavra pausadamente enquanto olhava no fundo dos seus olhos vermelhos. Adivinhei uma indagação do tipo mas que porra é essa que a antipática disse? e me antecipei ao som estridente da sua voz, explicando que era Caio. Pergunte a ela - e apontei para a esposa tresloucada de Afilhado -, talvez ela tenha descoberto de quem se trata. Virei as costas. Caio se orgulharia.

Esperei o apagar das luzes e o parabéns pra você, juntei meu casaco, meus doces, joguei meu cabelo bom para o outro lado e saí antes que a Terceira Guerra Mundial explodisse. Porque, sabe, nenhuma maçã do amor valeria tamanho sacrifício da minha parte...

5 comentários:

  1. Puxa, [P], este texto, que quase me levou às lágrimas, é a prova definitiva do que eu já sei faz tempo, mas não tinha uma testemunha de peso (não! você não é gorda) prá me dar crédito perante outros adultos incaltos.
    Festa de aniversário para crianças é somente para crianças. Ponto final. Elas saberão empanturrar-se de doces, refrigerantes, lambuzar-se de bolos, e imitarem adultos com bastante desenvoltura, dançando funk ou reprisando o show do artista do momento que passou no Gugu do último domingo. Nenhuma delas vai ficar cuidando da roupa da outra, falar de trabalho muito menos dos escritos maravilhos do Caio. No fim da festa vão estourar todos os balões e voltarão para casa com suas sacolinhas surpresas lotadas de guloseimas, sem culpas ou arrependimentos. Já os adultos...quanta diplomacia...
    Você já devia saber que mulheres possuem um problema histórico com mulheres que o homem trouxe de sua vida de solteiro, incluindo mãe, tias e dindas. Se ela for linda, maravilhosa, ter cabelo bom e ainda por cima inteligente, prá um barraco é um pulinho. Como disse prá uma amiga de blog que foi obrigada a ir em um aniversário "teen", comer sushi e ouvir Slipknot a noite inteira. Estamos ficando sem opção de festas pra gente grande.
    Beijos menina multi blog

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  2. E eu fico muito feliz com teu retorno!!!Obrigadao!
    bjOo'

    :D

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  3. Só não há escapatória
    Pra habilidade da sua oratória
    Fazendo a menina simplória
    Só uma menina
    Deve ser sua sina
    Transformar falastrões
    Em criaturas pequeninas
    Assim como prende as atenções
    Inspira canções
    Seu perigo merecia uma vacina
    MAs não tendo
    Sigo a contendo
    Tendo lendo ainda
    E rindo de sabê-la Dinda...

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  4. Quase me sinto mal a sorrir com o sarcasmo dos teus textos. Entre toda a ironia e afins, há demasiadas verdades para resumir tudo aquilo que se sente ao lê-los a um sorriso. No entanto, ainda não vou deixar de sorrir porque, felizmente, ainda não vivo a tempo inteiro no universo de cínicos maiores de idade, embora o meu universo juvenil e atrevido já esteja em rota de colisão. Continua a escrever!

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  5. Coisinhas estranhas essas não? Festas de crianças.

    Repito meu último recado, tão desastradamente ignorado. Pegue o sentimento dele e adicione uma pitada de heroísmo, talvez um cavalo branco, e uma boa dose de contra-gosto.

    Com doces.

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[Suas Pegadas]