terça-feira, 2 de agosto de 2011

[Gente - II*]

Genitor, querendo cumprir algo parecido com uma promessa, chegou de repente e me disse que hoje iríamos na nossa rua, ver como estavam todos os que ainda restam daquela época. Sim, nós temos uma rua. Na verdade ela pertence muito mais a ele do que a mim, já que saí de lá com pouco mais de dois anos. Ainda assim, eu lembro, ah, como eu me lembro. Lembro que era no final daquela rua que Genitor, após chegar cansado do trabalho, me levava, de carro, para dar o passeio de toda santa noite - passeio este ansiosamente aguardado pela minha pessoa em forma de bebê. Reza a lenda que eu era uma Maria Gasolina mirim e que, como tal, me recusava a dormir sem dar uma volta de carro, ainda que apenas o barulho do motor já me fizesse adormecer, mesmo que o veículo estivesse parado. Lembro também que era a calçada da minha casa, naquela rua, que eu insistia em ajudar a varrer - as fotos guardadas na gaveta das recordações não me deixam mentir. Lembro da cadeira empurrada até bem perto dos copos que eu queria lavar e que não deixavam. Maria Gasolina mirim sim, mas honesta, de topless e trabalhadora, como as mesmas fotos deixam claro. Lembro de uma tempestade, da água entrando pelo quintal, de objetos boiando ao meu redor e das minhas perninhas cruzadas numa cadeira, vendo toda uma vida passar e ser carregada pela enxurrada. Esta é a nossa rua, para onde Genitor me carregou, muitos, muitos anos depois. Havia encontrado uma senhora que era nossa vizinha, havia comentado sobre mim, havia prometido me levar para que me vissem, e assim foi. A nossa rua mudou. Diz aquela gente de sorriso farto e abraços generosos que não há mais enchentes e, a julgar pela quantidade de crianças que vi, brincando felizes, não duvido mesmo que as enchentes tenham acabado; afinal, quem teria coragem de permitir que mais crianças vissem suas vidas passando ao seu lado, sendo carregadas pela água? Você permitiria? Eu, não.

Entrei em duas casas. Somente em duas porque descobri assim, sem querer, que não sou passional apenas quando me apaixono, mas sou passional até a alma. Então, só consegui entrar em duas casas e, em ambas, fomos recebidos como se fôssemos gente importantíssima. Na primeira casa, a da vizinha para quem Genitor prometeu que iríamos lá, ouvi que éramos visitas muito ilustres e ouvi meu nome sendo repetidas vezes, sempre no diminutivo, como se eu ainda fosse a criança de um ano e pouco que ela tanto carregou no colo. Consegui me controlar, com muito esforço. Na segunda casa, porém, eu desabei. Por dentro. Já desabou por dentro? É esquisito, o impacto é muito mais forte, posso garantir. O portão se abriu e um homem de rosto familiar surgiu. Era o rapaz franzino de outrora, hoje com cinquenta anos escondidos numa aparência de trinta e cinco e que dizia não estar me reconhecendo. Relevei. Homens... Depois, uma moça, treze anos mais velha do que eu, de fisionomia muito mais reconhecível para mim, linda, apareceu no portão. Foi aí que comecei a desabar. Quando a chamei pelo nome, ela respondeu me chamando pelo meu, nos abraçamos e combinamos que a partir de então poderíamos fofocar muito porque, olha, eu também cresci, não sou a menininha de fita no cabelo com quem não podia falar certos assuntos. Fui desabando. Ela também disse que mudei demais, mas tudo bem. O estrondo final, pude sentir, aconteceu quando a senhorinha de cabelos brancos surgiu, a passos lentos, e se pôs entre os filhos, me olhando, me olhando e me olhando como se aquela fosse a última vez que me veria. Foi isso que senti: era a última vez que nos veríamos. E se ela disser que estou muito diferente? - pensei. Ela, a que fazia as roupas idealizadas por Mamãe? Ela, a que dava forma aos pedaços de tecido e à imaginação arrebatadora daquela que me carregava feito bonequinha de porcelana? E foi o que ela disse, unindo-se ao coro daqueles que, se passassem por mim na rua, não me reconheceriam. Perguntei se ainda costurava e ela disse que não estava mais enxergando, mas que conseguia me ver e eu estava muito mais bonita do que antes. Caíram as últimas vigas de sustentação da minha alma, embora eu tentasse brincar, dizendo que quando criança era feia e aí o tempo passou e um milagre se fez. Caíram. Chorei, para dentro tambem. Já chorou para dentro? Chorava escancaradamente para dentro enquanto aquela gente concordava que sim, como estou diferente, sim, como estou bonita, sim, olhe onde cheguei, sim, bonita mesmo, sim, graças a deus tenho a vida que tenho, sim, não me reconheceriam, e eu lá, sentindo meus órgãos sendo carregados pelas lágrimas, do mesmo jeito que a enxurrada da infância carregou tudo ao meu redor.

Queria dizer que eu reconheceria a todos. Que fui reconhecendo um a um, conforme apareciam na minha frente. Queria explicar que não precisava de tudo aquilo, de tantos mimos, de tantos agrados, de tantos sorrisos, porque aquilo estava acabando comigo de uma maneira tão boa que eu tinha medo que chegasse ao fim. O máximo que consegui fazer foi perguntar por uma casa abandonada e caindo aos pedaços, se estavam vendendo e que eu ia comprar, terminar de destruir e erguer um sobrado com flores nas janelas. Aquela gente sorriu, dando a entender algo como se eu não pudesse mais pertencer àquele lugar e como se eu não pudesse mais viver na minha rua. Senti como se estivessem me dando o máximo que eu poderia ter de novo: o afago, os abraços, os sorrisos e a doçura que poeira nenhuma consegue levar embora. E, sabe, eu senti meu coração batendo de um jeito que me deu a certeza de que não abandonei totalmente os sentimentos bons que devemos carregar dentro de nós. Eu, avessa a seres humanos. Eu, arredia de nascença. Ainda posso gostar de gente. Porque são eles. Porque é a minha gente. E porque sou eu. Mesmo que seja pela última vez.


 

[*escrito em 29/07/2011, mas deixado guardado à espera de um momento em que eu conseguisse usar o teclado de um computador sem encharcá-lo. tentativa inútil. que bobagem a minha imaginar que conseguiria...]

4 comentários:

  1. "E eu que não creio
    Peço a Deus por minha gente
    É gente humilde
    Que vontade de chorar"


    *suspiro*

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  2. Lindo [P],
    Adorei,
    Não entendi o "Mesmo que seja pela última vez", mas sei q "nós" não podemos entender tudo o que falamos.

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  3. P, peloamordedeus, chorei aqui também. que lindeza tudo isso! saudades de você, vida besta essa que não nos permite ter tempo para falar com as pessoas que a gente gosta!

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