segunda-feira, 20 de abril de 2009

[Cansaço*]

... e era uma manhã de abril e o sol aquecia meus pensamentos misturados aos papéis em desordem sobre a mesa de mármore frio quando eles foram chegando, um a um, numa sanha adolescente visível nos gestos bruscos à procura do lugar ideal, o mais próximo dos anjos, o mais próximo de mim, o que lhes permitisse sentir o perfume que eu estava usando, o mesmo de todas as vezes em que nos encontramos, e foi então que começou o meu suplício para tentar convencer a todos que não, eu não tenho como agradar a gregos, troianos, macedônios e etruscos, a não ser pelo perfume que carrego entre meus seios, nos pulsos e na minha nuca mas, você sabe, sou tão arredia que, no máximo, deixo um rastro de mim no ar e, quando piscam os olhos, já me desfiz em cacos outra vez, de modo que, se tínhamos prazos para serem cumpridos, datas já previamente estabelecidas, eu não poderia abrir mão de uma semana de provas em função de alguém em especial e satisfazer a todos naquela mesa, não que não sejam especiais, quem não é especial sou eu, concorda?, não? enfim, de qualquer forma, olha, nesta semana serão as provas, não posso jogar uma feira supermegaincrivelmentemultidisciplinar por entre estes cinco dias, pois as crianças vão surtar e, meu bem, eu sei como é um surto digno, porque todos os meus surtos assim o são e, além do mais, todos careciam de argumentos mais convincentes capazes de me fazer repensar o que já tinha sido estabelecido de comum acordo numa das tantas outras reuniões que mais parecem sessões de terapia coletiva, já que uma delas, sentada pertinho de mim, diz que está sem cabeça e pede ajuda porque não sabe mais o que fazer com o pênis inútil do namorado de anos e com quem até pensa em se casar, mas e o pênis inútil, não é, [P]? e então eu respondo que, amiga, não vejo como eu possa te ajudar, se nem ao menos disponho de um pênis, seja ele inútil ou não, de maneira que passemos ao próximo problema, academicamente falando, e a outra, do meu lado direito, fala em tom bem baixinho que na semana de provas terá que se ausentar porque estará ovulando e, você sabe, [P], quero muito engravidar, esta semana será decisiva e blábláblá, sendo interrompida pela próxima da fila que me pergunta se eu acho que a barriga dela diminuiu e assim, falando sinceramente, digo que não, que está a mesma coisa e ela ameaça chorar, só retomando o controle dos próprios nervos quando um deles começa a rir bem alto por estar muito contente com seu time do coração e, meu deus do céu, como é difícil fazê-lo parar de insistir porque, olha, não vou sair com você mesmo, é completamente pessoal, você me dá asco e falo isso sorrindo debochadamente porque eu sei que ele não sabe o que é asco, e assim, de repente, não mais do que de repente, todos estão discutindo sobre seus problemas pessoais, tentando justificar suas faltas, seus atrasos e suas devidas incompetências para mim, para os outros, para si mesmos, numa espécie de barbárie coletiva e eu, logo eu, que não tenho muita fé no ser humano, que não tenho paciência para lidar com gente, que tenho apenas um ímpeto guardado dentro de mim e que aflora nos meus momentos de transe altamente necessários à minha sobrevivência, saio de mansinho e ninguém percebe minha ausência e só se dão conta que estou ali para resolver coisas sérias quando volto da cozinha com uma faca na mão direita e um papel na mão esquerda, coloco ambos sobre a mesa e explico que a faca é para aquela dar um corte na barriga que não está legal ainda não, e que o papel contém um endereço de sex shop onde aquela outra poderá adquirir um vibrador que resolverá o problema do pênis inútil do namorado com quem ainda pensa em se casar, ou quem sabe, a faca para cortar o pênis inútil e o vibrador para ajudar na semana da ovulação daquela outra que precisa ser fecundada justamente num período de avaliações, talvez para que o bebê já nasça com trauma de escola, vai saber, e então todos param me olhando porque, não é mesmo?, como eu, com esta suposta carinha de anjo conheço o endereço de um sex shop, meu deus o mundo está perdido, se até você, [P]! e eu respondo que desconheço os poderes de um vibrador, mas que vi lá umas calcinhas ínfimasminúsculasquaseinvisíveis que são, vejam só, comestíveis, assim, para você comer a calcinha me olhando nos olhos enquanto me come, na foda dos nossos sonhos, compreende? e depois de todas estas teses sobre problemas existenciais dos meus colegas de trabalho percebo que, ai meus deus como é difícil, só partindo para medidas extremas é que conseguirei fazê-los entender que não, são muitas pessoas, muitos pedidos, gregos, troianos, macedônios e etruscos para serem agradados, de modo que, escutem bem, prestem atenção no que vou dizer, acima de mim, só a Direção e, pelo que dá para notar, falta à Direção toda esta malemolência, e eu uso malemolência para não ser grossa com vocês, percebem?, para lidar com seres que se recusam a entender o óbvio e é por isso que a própria Direção confiou a mim a tarefa de presidir estas reuniões que parecem coisa do demônio, só falando assim, e, portanto, que fique bem claro que quem manda aqui, nesta reunião, sou eu e, assim sendo, sintam-se informados que a semana de provas será mantida nos dias abcd, que a tal feira será realizada no mês tal, algum problema para você? não? que ótimo, foi exatamente o que pensei, que vou precisar daqueles relatórios para semana que vem, sem falta, e que blábláblá, e tenho dito! e, de verdade, eu sinto muito, mas um dia descobri que certas coisas precisam ser resolvidas na ignorância porque, olha, como as pessoas me cansam de vez em quando...


*levemente inspirado em Caio Fernando Abreu

4 comentários:

  1. Gostei muito do seu texto. Saboroso....

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  2. Faço a séria recomendação de que compre urgentemente hidrocor e folhas em branco e DESENHE! Porque alguns da espécie homo sapiens não são nada sapiens..rs
    Beijos bela

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  3. Lu, PRECISO dizer que, quando comecei a ler teu comentário, achei que estava me recomendando comprar um VIBRADOR. Passei os olhos correndo sobre "hidrocor" e li "vibrador". Camisa de força? Freud? Alguém explica?

    ;)

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  4. [P], isso se chama [P]oder. Querida, abuse dele, porque as pessoas cansam mesmo, sempre. (risos)

    beijos da janela

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