sexta-feira, 14 de novembro de 2008

[Das Descobertas]

Ela estava sentada na beira da cama desarrumada há pelo menos uma hora. Já tinha tentado fumar, mas sem sucesso. Maldita mania aquela de seguir como se fosse uma puritana de igreja as decisões que concebia para si mesma, ora como passatempos fúteis, ora como um credo a ser entoado com louvor suficiente para que não caísse em tentação. Foi assim com a decisão de parar de fumar. Qualquer hora dessas ia inventar que devia parar de beber e andar com um coque igual ao da falecida avó. Se fosse viva, talvez se orgulhasse da total falta de jeito da neta para ser moça pudica. Sim, porque ela mesma, a avó, aprontara pelas noites da cidade noutros tempos. Se bem que, não, parar de beber ela não ia prometer mesmo. Não enquanto aquela garrafa de whisky continuasse a observá-la na mesa de cabeceira. Uma hora e meia, quase. E ela permanecia na mesma posição. Pernas cruzadas e rosto apoiado nas mãos, por sua vez apoiadas nas pernas despidas. Gostava de andar seminua pela casa quando estava só. Era como se o seu corpo lhe fizesse companhia e lhe bastasse quando estava irritada demais para aguentar gente. Gente sempre lhe causou uma certa aversão. Aversão às avessas, porque quanto mais queria se isolar, mais se aproximava de desgraças iminentes. Ela mesma, um vulcão prestes a entrar em erupção, avessa a contatos cheios de pormenores com gente. Ela mesma, uma despudorada enrustida se deixando atrair e levando para dentro de si o caos do mundo em forma de corpos suados e membros eretos. Ela sabia que era sua contradição que atraía. Usava-a, portanto, intencionalmente. Uma hora e quarenta e cinco minutos depois, pôs-se a andar pela casa. Achou melhor guardar aquela bebida que fitava-a com rancor. Ela era assim. Gostava de imaginar reações até mesmo em objetos de desejo. Achou bonito pensar que o gargalo da garrafa de whisky implorava pela sua língua em seus contornos. E assim pensou. Tomou apenas água gelada com a porta da geladeira aberta, para fazer inveja ao whisky excitado e para apaziguar o fogo que a consumia desde a noite anterior. E se ele estivesse à sua espera?







Luísa, enfim, desceu as escadas às pressas. Estava atrasada, para variar. Tanto tempo perdido sentada naquela cama. Tanta confusão de sentimentos a impedindo de escolher qualquer peça de roupa mais discreta que fosse. Lavou o rosto três vezes antes de decidir usar apenas um batom cor de boca mesmo, para que os olhos dos outros não se fixassem mais nos lábios carnudos do que nas palavras que eles poderiam proferir. Luísa gostava da expressão cor de boca. Sentia como se uma língua desenhasse sobre seu corpo a expressão cor de boca sempre que a pronunciava. Havia também cor de sexo. E cor de gozo. Escrevia com batom vermelho no canto do espelho do banheiro as expressões que não queria esquecer quando estivesse transando com o homem da sua vida, só para lembrar de caprichar nos matizes coloridos que derramaria sobre ele e sobre os lençóis.

Cumprimentou quem encontrou pelo caminho com um leve balançar de cabeça e, durante a caminhada até seu destino, achou por bem repetir a si mesma o seu discurso ensaiado. Não importava que pensassem que era louca por estar falando sozinha. Era mesmo louca. Falava mesmo sozinha. Sozinha. Eu só vim porque preciso dizer duas coisas, repetia com vigor. Modificava a entonação ao mesmo tempo em que ajeitava o cabelo esvoaçante, como se procurando combinar a fala perfeita com o semblante perfeito. Anoitecia e o vento aumentava. Luísa gostava do escuro. Mas não do vento. Apressou seus passos. Aumentou o tom da voz. Queria ouvir a si mesma. Enfim, chegou ao seu destino. E só então, num instante de calafrio provocado pela queda da temperatura e por um vento mais ousado, percebeu que tinha esquecido de colocar sua calcinha.






Assim era Luísa. Esquecida. E inesquecível. Como toda falsa inocente deve ser.

[Continua...]

8 comentários:

  1. Textinho simplesmente maravilhoso!!!!
    Queridona, origada pela força aquele dia!
    Bjks e um fim de semana cheio de enegia!

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  2. Vejo um livro-blog chegando? Ah, não... acho que foi só a Luísa que passou por aqui... :T

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  3. Bom texto, voltarei pra ler o resto!

    beijo

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  4. [P], gostei da Luísa ... esquecida e inesquecível ... me faz pensar: será que tudo que escrevemos de alguma forma é autobiográfico? (risos!) Please, continua logo... beijos da janela.

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  5. Clarice, autobiográfico? Será?

    Luísa tem contornos bem definidos dentro da minha cabeça. Imagino-a em sentimentos e ações. Sei que tipo de roupa ela gosta de usar e que tipo de desaforo não deixaria passar em vão. Posso quase vê-la passeando distraidamente pelas ruas da cidade :)

    Não sei se há algo meu nela. Mas acho que haverá sempre alguma coisa dela dentro de cada uma de nós, ainda que sejam coisas não-declaradas abertamente.

    Aliás, gosto dela [e, oh, é BEM difícil eu, [P], ir gostando de alguém logo de cara] justamente por isso. Luísa é aberta como uma janela que precisa de conserto mas que, por mostrar uma paisagem tão instigante, ninguém se preocupa em consertar...

    Mas deixa eu dizer uma coisa? "Esquecida", definitivamente, eu não sou :)

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  6. [P]!

    Eu adorei a Luiza (e olha que eu também sou difícil de gostar de alguém logo de cara assim).

    Gostei muito do conto, tive a visão do rosto da Luiza, quando "percebeu que tinha esquecido de colocar sua calcinha".

    Isso é muito complicado de conseguir. Pouquíssimas linhas e já deixou a personagem formada na cabeça do leitor.

    Adorei o conto [P]. E se puder continuar, serei (acredito que posso dizer "seremos") muito grato(s).

    Beijos [P].

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  7. [P], quando vi seu comentário vim correndo para ver se havia mais de Luísa por aqui... continua logo. bjs da janela

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[Suas Pegadas]