segunda-feira, 5 de julho de 2010

[Mesa Para Dois]

I

- Alô.
- Oi. Sou eu. Preciso que você saiba de algumas coisas - a voz dela era enfática.
- Pode falar.
- Não. Você precisa ver com seus próprios olhos. Hoje. No horário de sempre, pode ser?
- Pode.
- Certo. Tchau, então.

Ele não teve tempo de se despedir. Ficou pensando no quanto é fácil. Podia ter se negado ou, quem sabe, pelo menos demorado a dar uma resposta. Mas não. E também não adiantava, já estava feito, já disse que podia. E ele era muito macho para não ir em frente.

II

Escolhe a roupa. Ajeita o cabelo. Retoca a maquiagem. Uma olhada no espelho. Não, não está bom. Pega aquele vestido novo. O vestido que ele nunca viu. Calça a sandália que ele também não conhece. Usa novamente o rímel. Lambe os próprios lábios ao se olhar novamente no espelho. O batom, outra vez. Conserta o decote. Maldita alça que teima em desabar pelo ombro esquerdo. Ela estava bem, de vermelho. Sempre sonhou em usar vermelho nesta ocasião. Uma olhada no relógio. Ele estava chegando. Apagou as luzes.

III

Já sei, vou me atrasar. Quem aquela vadia pensa que é? Deve estar achando que é só estalar os dedos e vou correndo, feito cachorrinho. Uma ova, isso sim. Vou me atrasar, não muito, não tanto quanto ela costumava se atrasar, mas vou. Também, quem me manda ser tão idiota? Sou macho, muito macho, mas não consigo dizer não a ela. Aquela... aquela... Ela me paga! Aposto que está usando a porra da calcinha que só de olhar já me deixa de pau duro, a safada. Aí, está vendo? Já fico assim só de imaginar. Se fosse só isso, mas não. Ainda vai me olhar com aqueles olhos que sabem se derramar sobre meu corpo todo, me lambendo, me chupando e me fazendo querer foder a vida inteira com ela, só com ela. Se eu não tivesse dado a minha palavra, que merda! Acho que vou trocar esta camisa, ela não gostava muito dessa, eu sempre soube. Não é porque não quero mais nada com ela que vou aparecer na sua frente de qualquer jeito, não. Quem aquela vaca pensa que é? Vou aparecer bem, muito bem, vou fingir que estou ótimo e que a vida está boa. Sou macho ou não sou? Melhor ir logo. É bem capaz dela achar que estou nervoso e que por isso me atrasei. Eu, nervoso, imagina! Cadê a droga da chave?

IV

Acendeu as luzes. Estava sozinho. Procurou pelo perfume dela. Não sentiu nada. Parecia que já tinha saído dali há tempos. Imaginou que fosse algum tipo de brincadeira, embora tivesse a certeza de que ela não gostava desse tipo de brincadeira. Aproximou-se da mesa. Tudo lá. Todas as cartas, os poemas, os livros, as canções, todos os gestos, todos os gemidos, tudo lá, sobre a toalha. Arrumara a mesa com o mesmo cuidado com que escrevia borrões no espelho embaçado do banheiro. Quis pôr tudo em ordem cronológica, ah, aquela maldita mania de ser perfeitinha e, quando resolveu deixar um pouco de bagunça que lembrasse os lençóis amarrotados, percebeu que tudo ficava mais bonito quando estava fora do seu controle, quando se perdia por entre suas pernas. Algumas palavras escorriam em vermelho pelo tapete. Ele tentava consertar, misturava as consoantes, tropeçava nos adjetivos, amassava iniciais, até que se deu conta que era inútil. Sozinho, não conseguiria. Mesmo sendo muito macho para tudo na vida, ele chorou. Chorou porque estava ali, sozinho. Porque se ela ao menos estivesse por perto, talvez conseguissem remendar as entrelinhas. Chorou tanto que acabou borrando os versos soltos deles dois e quase não conseguiu ler aquele papel escrito minutos antes dela fechar a porta.

V

Fazia frio. Se ela soubesse que faria frio, tinha colocado qualquer coisa sobre o vestido. Mas agora já era tarde. O homem acabava de chegar, agarrando sua cintura, se oferecendo para pagar uma bebida e perguntando se aquilo tudo era só para ele. Não, seu idiota, eu só quero encher a cara e me divertir. Pensou em responder, mas deu seu melhor sorriso e segurou o olhar para que ele não se derramasse sobre o homem errado, na hora errada, no lugar errado. Toda errada era ela. Isso já bastava.

VI

Ele juntou tudo na toalha, fez uma grande trouxa e desceu a escada carregando os dois nos ombros. A mesa ficou nua. Ela adoraria sentar-se nua nesta mesa nua, ainda conseguiu pensar. Eram pesados, aqueles dois no seu ombro. Não era justo que ele carregasse a história toda sozinho. Não que não suportasse, já que era muito macho, lógico, mas ele queria - ah, como queria - dividir com ela aquilo tudo. Deu uma olhada no papel que ela acabara de escrever. Pouca coisa. Nada que nunca tivesse lhe dito antes. E se perguntou, então, para onde ele iria se ela tivesse pedido distância. Para onde ele, tão macho, iria? A lugar nenhum, conseguiu ouvir a própria voz. A lugar nenhum, com aquele peso todo sobre si. Forte, muito forte. Mas ela não era forte. Era só uma qualquer. Fraca. Escorrendo em vermelho pelo asfalto da cidade.

4 comentários:

  1. Te diria como eu te vejo

    escorrendo

    em vermelho

    pelo asfalto da cidade,

    te diria como

    me deito

    sobre seu vermelho

    escorrido

    no asfalto da cidade,

    te diria como

    eu me esfolo,

    me esfregando

    ao vermelho

    escorrido

    no asfalto da cidade,

    te diria

    me escorra em vermelho:
    sou o asfalto da sua cidade!

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  2. Gostei tanto tanto, que nem quero comentar o texto pra não estragar.

    "Não era justo que ele carregasse a história toda sozinho"

    Lindo.

    =*

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  3. Do caralho!
    A coisa granfinou por aqui. Lindo ver tudo indo pra cima e pra mais perto das coisas de onde saem. Parabéns pela velocidade e divisão. E pelo final. Volto!

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